O Brasil está cometendo um erro estratégico gravíssimo, e pouco se fala sobre isso. O Serpro, empresa pública que deveria ser a guardiã da soberania digital do estado brasileiro, está montando uma “Nuvem Soberana” em parceria com as bigtechs dos EUA que nos espionam, nos dominam e lucram com nossa dependência: Amazon, Microsoft, Google, Oracle, etc. A “Nuvem Soberana”, em vez de construir a necessária soberania digital brasileira, está, na verdade, aprofundando a dependência tecnológica e bloqueando qualquer possibilidade real de soberania. É um erro que, se não for corrigido agora, será extremamente difícil, senão impossível, reverter no futuro.
Soberania Fatiada
Para compreender os detalhes desse erro estratégico do Serpro, leia a tese de doutorado “Soberania Fatiada: Controle das Infraestruturas e Subordinação da Autoridade Pública no Mundo Digital”, de João Francisco Cassino (2025) com orientação do Prof. Dr. Sérgio Amadeu da Silveira, neste link
Esse projeto de falsa “nuvem soberana” não construirá a soberania digital brasileira, porque está dependente das monarquias digitais comandas por senhores feudais digitais do capitalismo de plataformas. É uma evidente armadilha, um cavalo de tróia digital onde os estados EUA terá controle sobre o processamento e armazenagem de dados, informações e conhecimentos de todos nós brasileiros e brasileiras.
O atual presidente do Serpro, Alexandre Amorim, jamais se aproximou nem debateu seriamente a questão da soberania tecnológica, ao contrário de gestores como ex-presidente do Serpro Marcos Mazoni, por exemplo. Amorim sempre implementou projetos prontos, comprados de fornecedores externos, sem exercer qualquer controle público sobre as tecnologias adotadas.
Sua trajetória em prefeituras que se orientam pelo neoliberalismo, como as de São José dos Campos e São Paulo, foi marcada pela subordinação às lógicas de mercado. No Serpro, essa postura tem promovido a remoção sistemática de lideranças e gestores comprometidas com políticas de soberania digital e software livre. Funcionários públicos que discordam dessa política entreguista têm sido isoladas.
Hoje, não pode pensar diferente no Serpro. Se discordar, poderá ser perseguido.
Além disso, o blog Capital Digital publicou uma matéria afirmando que “o presidente do Serpro, Alexandre Amorim, acaba de trazer para o governo federal empresas do Paraná que já foram investigadas por corrupção na Prefeitura de Curitiba”. https://capitaldigital.com.br/amorim-abre-as-portas-do-serpro-para-instituto-paranaense-investigado-por-corrupcao
Em vez de se ajoelhar diante das Big Techs dos EUA, o Serpro deveria fazer exatamente o contrário e dar dois passos para o nosso lado e olhar o que o Uruguai (https://www.antel.com.uy/web/datacenter) está fazendo sobre soberania digital.
Depois de anos de revolução na educação com o Plano Ceibal, que distribuiu computadores a todas as crianças, professoras e professores e conectou as escolas públicas, o Uruguai seguiu firme e consolidou sua liderança em tecnologia e governo digital na América Latina por meio da Antel, sua empresa pública de telecomunicações.
Hoje, o país já conta com um data center 100% público com software livre, construído e operado pela própria estatal, alimentado por uma matriz energética de 98% de fontes renováveis e com infraestrutura totalmente sob controle nacional, sem dependência de empresas estrangeiras para sua operação. Além disso, o Uruguai está projetando dois novos centros voltados para inteligência artificial, todos com soberania nacional e sem a participação das Big Techs.
É isso que o Serpro deveria estar fazendo: investir em infraestrutura pública, software livres e autonomia estratégica e não entregar nosso futuro digital do Brasil nas mãos de corporações que respondem a leis estrangeiras e a interesses que são diretamente contrários aos do povo brasileiro.
A tese de doutorado “Soberania Fatiada: Controle Das Infraestruturas E Subordinação Da Autoridade Pública No Mundo Digital”, de João Francisco Cassino (2025) com orientação do Prof. Dr. Sérgio Amadeu da Silveira, mostra com nitidez como essa falsa “nuvem soberana” entrega as chaves do cofre digital do estado brasileiro a quem já tem mandado judicial para abri-lo quando quiser. Os sistemas usados são fechados, não auditáveis, baseados em licenças temporárias. Ou seja: o Brasil não é dono de nada. Nem do software, nem do hardware, nem dos dados, mesmo que estejam fisicamente em território brasileiro.
Pior: essas “nuvens soberanas” no Brasil precisam se conectar com infraestruturas nos EUA. E as empresas podem, a qualquer momento, acessar, mover, copiar esses dados, alegando cumprimento de leis dos EUA. Não é teoria da conspiração. Basta ler a Cloud Act, que obriga empresas dos EUA a entregar dados a autoridades dos daquele país independentemente de onde esses dados estejam hospedados no mundo. Isso inclui dados do SUS, da Receita Federal, da Previdência, do funcionalismo público, tudo.
Além disso, leis como a FISA permitem vigilância sem autorização judicial, e a CALEA exige que hardwares e softwares tenham “portas dos fundos” para facilitar escutas. Ou seja: mesmo que o servidor esteja em Brasília, o controle está em Washington.
Tudo isso é vendido como produto e discurso da “transformação digital”, como se adotar tecnologias prontas das Big Techs fosse sinônimo de soberania. Mas, na verdade, é o oposto: é entregar nosso futuro digital nas mãos de quem tem interesses próprios, inclusive derrubar governos eleitos democraticamente, como fazem ao redor do mundo.
Mas há outro caminho. E ele já foi trilhado no Brasil.
Há exatos vinte e um anos, em 2004, o economista Paul Singer escreveu um texto fundamental: “Desenvolvimento capitalista e desenvolvimento solidário” (leia aqui https://www.scielo.br/j/ea/a/qzkhXSYNy9DtBzPpwQZjJdj/?lang=pt. Nele, ele mostrava dois caminhos para a humanidade. De um lado, o modelo capitalista: baseado na competição, na propriedade privada e na privatização do conhecimento. Do outro, o desenvolvimento solidário: fundado na cooperação, na autogestão e no acesso coletivo aos meios de produção, inclusive aos meios digitais.
Singer destacou algo que, na época, parecia pequeno, mas era estratégico: o software livre. Para ele, não se tratava apenas de uma alternativa técnica ao monopólio da Microsoft. Era uma experiência concreta de economia solidária no campo do conhecimento, onde o saber deixava de ser mercadoria para se tornar bem comum, livre, compartilhado.
“O novo conhecimento não deveria ser propriedade privada, protegido por patentes, mas deveria ser livremente disponível para todos.”
Esse pensamento não surgiu do nada. Vinha de experiências reais: governos populares em Porto Alegre, São Paulo e no Rio Grande do Sul já usavam software livre como política pública de inclusão digital, soberania tecnológica e cidadania. Essas práticas se alimentavam dos encontros do Fórum Internacional de Software Livre (FISL) e do Fórum Social Mundial (FSM), que reuniam hackers, educadores, movimentos sociais e gestores públicos em torno de uma ideia simples, mas radical: a tecnologia não pode ser propriedade exclusiva de corporações.
Naquele momento, o software livre era visto como algo mais do que código: era resistência, era autonomia, era justiça social. Era a prova de que era possível construir infraestrutura digital sem depender de quem lucra com nossa submissão.
Hoje, retomar esse caminho não é nostalgia, é urgência.
Vivemos sob o domínio de algoritmos que decidem quem trabalha, quem consome, quem é incluído ou excluído, e quase tudo isso roda em servidores controlados por um punhado de empresas estrangeiras. Enquanto isso, os princípios do software livre foram marginalizados: ou viraram “coisa de hacker”, ou foram capturados por discursos corporativos de “inovação aberta” que, na prática, só servem para manter o status quo.
A tecnologia nunca foi neutra. Desde os primórdios da humanidade, quem controla a tecnologia exerce poder. Hoje, esse poder está concentrado em dados, algoritmos e inteligência artificial. E, como disse o filósofo Andrew Feenberg, “a tecnologia é uma das maiores fontes de poder nas sociedades modernas”, mas não é destino. É campo de disputa.
Por isso, a pergunta que Paul Singer nos deixou continua urgente: É possível um desenvolvimento tecnológico que não reproduza desigualdades, mas as supere?
A resposta está em retomar e atualizar a aposta na tecnologia como bem comum. Isso significa:
• Reconstruir uma política nacional de software livre, com financiamento, formação e contratação pública preferencial por soluções abertas e auditáveis;
• Construir projetos de produção nacional de hardware, com foco em soberania e não apenas em montagem;
• Criar redes públicas de dados e IA, com governança democrática, transparência algorítmica e controle social;
• Articular isso tudo com a economia solidária, promovendo cooperativas de tecnologia, bancos de dados comunitários e infraestruturas digitais comuns com gestão popular.
Soberania digital não é só questão de Estado, é gestão de/com/para o povo
Enquanto as Big Techs atuam como verdadeiras monarquias digitais, precarizando o trabalho (como no caso de entregadores do iFood ou motoristas do Uber) e monopolizando a infraestrutura da comunicação planetária, elas também alimentam a desinformação contra as democracias, atrasando respostas urgentes às crises do autoritarismo em pleno crescimento através das plataformas das bigtechs.
Diante disso, construir data centers com alternativas digitais verdadeiramente soberanas, com softwares livres, códigos abertos e governança comunitária ou pública, torna-se parte inseparável da luta pela soberania digital e pela justiça social.
Essa perspectiva dialoga diretamente com os princípios da economia solidária, do conhecimento livre e da autonomia popular. Pode se materializar em iniciativas concretas como Territórios Soberanos Digitais: núcleos que colocam a tecnologia a serviço da vida e não do lucro.
É preciso recusar a submissão.
A soberania digital não se compra em pacotes de nuvem vendidos por quem nos espiona. Ela se constrói camada por camada, com tecnologia aberta, produção coletiva, nacional e estratégia pública.
Enquanto continuarmos comprando “soberania” de quem nos vigia, seremos reféns, não de um golpe militar, mas de um contrato. E a liberdade, como bem sabia Paul Singer, não se negocia. Se constrói, junto, com as mãos, com código aberto e com a vida no centro.
Por Everton Rodrigues: Movimento Software Livre, Economia Solidária e Rede Brasileira pela Soberania Digital - Contato: (12) 99145-5394